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domingo, 11 de agosto de 2013

Entre dois mundos e dois tempos: um duelo

Ao fundo, um som de mar abraça o palco gigantesco montado em todo o andar inferior do Theatro José de Alencar (TJA). O marulho acompanha o movimento ondulante da lona negra nas mãos dos atores, enquanto o público, instalado nos camarotes, debruça-se nos balcões como em grandes janelas, a curiar o vai e vem da vida dos personagens. O farfalhar do plástico, casado à sonoplastia, lembra a trilha sonora de uma orla, cenário tão familiar nosso, ao mesmo em que remete a um mar negro que em tanto se distancia do mar verde que nos banha. O duelo começou.

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Dando sequência às adaptações de romances russos, a mundana companhia (assim mesmo escrito, em minúsculas, com o adjetivo anteposto ao substantivo), de São Paulo, monta o seu sexto espetáculo numa lógica inversa daquela geralmente presente em companhias do eixo RJ-SP. Desde o dia 02 de agosto, até este domingo (11), está em cartaz no TJA a peça O Duelo, encenação da novela russa de Anton Tchekhov, cuja estreia nacional acontece em Fortaleza para, depois, partir para outras cidades do Nordeste até chegar à capital paulista.

Porém, antes mesmo das primeiras apresentações em Fortaleza, o público de três cidades do interior do Ceará pôde acompanhar o processo de criação do espetáculo. A companhia decidiu viajar por quase dois meses pelas cidades de Arneiroz, Iracema e Lavras da Mangabeira. Esta última é a cidade natal do ator Aury Porto, idealizador da peça e um dos fundadores da mundana companhia, servindo para ele como inspiração. Foi a partir da própria história de Aury que veio a ideia de aproximar o calor e a vida do Cáucaso à quentura e à rotina de pequenas cidades do Nordeste. Confira abaixo a conversa que tivemos com Aury sobre a ideia da peça e os próximos projetos da companhia:



A obra de Tchekhov, escrita em 1891, relata o cotidiano de personagens que moram em um calorento e pequeno lugarejo caucasiano, mas que anseiam por uma Rússia de clima mais ameno e de (suposta) efervescência cultural. No centro do romance, está Ivan Laiévski, um funcionário público que fugiu de São Petersburgo com Nadejda Fiódorovna, já casada com um outro homem. O comportamento do casal desafia as regras socialmente estabelecidas e provoca reprovação por parte dos moradores, quer seja de maneira mais translúcida, como no zoólogo Von Koren, quer seja de maneira mais camuflada, como em Maria Konstantínovna, “amiga” de Nadejda. A vida de Laiévski e Nadejda então passa a ser serrada por duelos: em seus íntimos, entre si, entre eles e os moradores. Até que Von Koren desafia Laiévski para um embate derradeiro.

Durante as três horas e meia de espetáculo (com 15 minutos de intervalo), uma variedade de elementos consegue prender a atenção do público e evitar um pouco o cansaço. A música se faz presente durante toda a peça, enquanto a iluminação e a sonoplastia amplificam a beleza das cenas. Materiais do cotidiano ganham outras cores e significados no palco. Em um momento, Nadejda se refresca nas águas do mar e brinca com um imenso saco plástico, que se transforma em uma bolha onde pode imergir para longe das dívidas e das febres costumeiras que lhe acometem. Em outro, uma chuva de fitas de papel gravita na tensão de relâmpagos e trovões de uma tempestade que chega à cidade, enquanto um redemoinho toma conta de Nadejda e da vida dos demais personagens.

Apesar de se passar no contexto europeu do século XIX, muitos elementos cênicos remetem diretamente à cultura cearense, como instrumentos musicais, chinelos de couro, cadeiras de balanço, além do próprio calor inclemente do sol e do barulho suave do mar. No tablado, não há somente o duelo de entre as ânsias particulares dos personagens e as expectativas sociais que conseguem ou não atender. Ali, chocam-se dois mundos separados por espaço e tempo, que se casam e se digladiam em constante movimento. Ou melhor, embatem-se duas realidades sociais: Cáucaso X São Petersburgo, Ceará X São Paulo, Nordeste X Sudeste, a dita “periferia” versus o dito “centro”. Talvez seja por isso que este texto de Tchekhov se mantenha tão vivo e consiga se conectar tão diretamente ao contexto brasileiro.

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O embate chega ao fim. As ondas do mar, por ora tão esquecidas, prevalecem após tantos acontecimentos. É o som da natureza que suplanta as arrogâncias e as vaidades humanas. A lona negra agita-se, prolonga-se. Não há mais Laiévski, Von Koren, Nadejda, Konstantínovna, Samóilenko, Diácono, o desfile de personagens. Em vez disso, surgem em cena Aury, Pascoal, Camila, Carol, Vanderlei, Freddy, o elenco. As ondas precipitam aos poucos no tablado, enquanto os atores as perseguem e delas fogem, como em uma brincadeira entre amigos numa praia durante o tempo livre. Até que uma gigante maré os engole e os leva para sempre ao fundo do Mar Negro. Tudo se faz escuridão. Mas o duelo ainda não terminou.

Serviço

Espetáculo O Duelo, da mundana companhia
Duração: 3h30.
Local: Theatro José de Alencar.
Apresentações: Às 19h, até hoje, 11.
Ingressos: R$ 20 a inteira, R$ 10 a meia.



Para saber mais, acesse o blog da peça, o site e a página no Facebook  da companhia.

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