Se os olhos são as janelas da
alma, os de Lavínia estão semicerrados por grossas venezianas de um silêncio
que ecoa mistério. Engana-se aquele que os observa e se acha capaz de entrever
o que se passa no íntimo deles. Nem o próprio Cauby, protagonista do filme Eu receberia as piores notícias dos seus
lindos lábios, consegue descobrir por inteiro o que está por detrás deles.
O fotógrafo (e o espectador) forasteiro se vê diante de diferentes versões de
Lavínia, à medida que o romance dos dois cresce com o passar dos minutos, das
horas, dos dias, dos meses. Até que a vida de ambos começa a descer uma
corredeira, como um dos muitos rios que cortam o ventre do Pará, alimentado
pelo proibido, pelo prazer, pelo remorso, pelo amor, pelo perigo.
– Cauby, santa é a carne que peca, diria mais tarde Viktor Laurence,
jornalista e amigo do fotógrafo, em uma agourenta premonição.
Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios (2011),
dirigido por Beto Brant e Renato Ciasca, é inspirado no livro homônimo de 2005,
de Marçal Aquino, que, aliás, também é o responsável pelo roteiro da adaptação.
Este é sétimo trabalho que nasce da parceria e da amizade de 20 anos entre
Brant e Aquino. Pela mão de Brant, já foram à tela Os Matadores (1997), Ação
Entre Amigos (1998) e O Invasor
(2001), todos livros de Aquino. Os outros três filmes do diretor (Crime
Delicado – 2005; Cão Sem Dono – 2007; e O Amor Segundo B. Schianberg – 2009)
não foram baseados diretamente na obra de Aquino, mas também tiveram sua participação
como roteirista. Já com Renato, Beto já vinha trabalhando desde O Invasor, sendo Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios o primeiro
filme no qual dividem a direção.
O filme narra o romance tortuoso
que nasce entre Lavínia, uma mulher cheia de histórias ocultas (e esposa de Ernani,
um popular pastor e líder religioso), e Cauby, um fotógrafo vindo de São Paulo.
Como pano de fundo, o cenário paradisíaco de uma cidade no interior do Pará, rachada
pelas tensões entre ambientalistas e madeireiras ilegais.
Eis um dos pontos fortes do
filme: apesar de o foco se mantém prioritariamente sobre o triângulo amoroso,
Brant e Ciasca conseguem também imprimir um teor político. Durante as gravações do filme, os índios de Santarém estavam denunciando a extração ilegal de
madeira em áreas de conflito. Esse foi o gatilho que fez a equipe se interessar
pelo tema e conversar com lideranças da região. A dupla de diretores, então, inseriu
no longa cenas que dialogam com as disputas ambientais presenciadas. Exemplos
disso é a pregação que o pastor faz em defesa da preservação das matas e dos rios e
o discurso de um ativista contra “um governo que na verdade é mais latifundiário
que os madeireiros” e contra “um plano de manejo de destruição” da floresta. Tudo
isso sem desviar ou destoar do romance narrado.
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Gero Camilo no papel de Viktor Laurence, jornalista de língua ferina |
Deles, porém, é nítido o brilho
que a enigmática Lavínia e a poderosa interpretação de Camila Pitanga adquirem.
A atriz consegue encarnar diferentes facetas de uma mesma personagem sem nunca
perder a unidade, mesmo com as enxurradas de transformações que invadem a vida
de Lavínia. Camila dá a ela um semblante sensível, sensual e agressivo,
deixando à mostra as cicatrizes guardadas no peito de uma mulher que muito
sofreu e que ainda muito sofrerá.
Em diversas situações, Lavínia se
encontra presa a uma situação em que há uma vontade mista de permanência e de
fuga (seja naquela que vivenciou no Sudeste, seja na que vive no Norte). Entre
um amor piedoso oriundo de uma profunda gratidão e uma paixão lascívia embalada
em um sonho antigo, Lavínia se faz perder e reencontrar nas águas escuras que
são seus sentimentos. Porém, sempre é dela a palavra-ação capaz de se
aprisionar ou de se libertar.
O filme traz em si uma carga
erótica muito latente, visível desde a abertura, em que uma modelo nua posa
para a câmera oculta de Cauby. A sensualidade tratada ali no filme não remete a
uma perspectiva isenta de gêneros. É o erótico dos corpos femininos visto
através de olhos masculinos. Uma visão que parte da masculinidade, sem cair,
necessariamente, na caracterização machista. Além disso, o erótico e o perigo
são constantemente costurados em um só, como na cena em que Cauby e Lavínia
brincam de pintarem sua nudez com pincéis encharcados de tinta, imaginárias flechas
venenosas lançadas na guerra entre índios rivais.
Em sintonia com os nãos e os sins de mistério que circundam Lavínia, elipses ambíguas marcam todo o percorrer do filme, mais escondendo e embaralhando do que explicando os fragmentos narrativos. No último ato, um corte brusco no tempo deixa muitas perguntas gravitando num vazio. O espectador, na companhia da própria Lavínia, se pergunta o que foi feito dela e se ela ainda existe. Até que um chamado ressoa e um sorriso inquietante se desenha. E os olhos do interlocutor sorriem, mesmo sem visão. Mesmo sem final.