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terça-feira, 20 de agosto de 2013

Eu veria os mais lindos filmes através dos seus trágicos olhos



Se os olhos são as janelas da alma, os de Lavínia estão semicerrados por grossas venezianas de um silêncio que ecoa mistério. Engana-se aquele que os observa e se acha capaz de entrever o que se passa no íntimo deles. Nem o próprio Cauby, protagonista do filme Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios, consegue descobrir por inteiro o que está por detrás deles. O fotógrafo (e o espectador) forasteiro se vê diante de diferentes versões de Lavínia, à medida que o romance dos dois cresce com o passar dos minutos, das horas, dos dias, dos meses. Até que a vida de ambos começa a descer uma corredeira, como um dos muitos rios que cortam o ventre do Pará, alimentado pelo proibido, pelo prazer, pelo remorso, pelo amor, pelo perigo.

– Cauby, santa é a carne que peca, diria mais tarde Viktor Laurence, jornalista e amigo do fotógrafo, em uma agourenta premonição.


Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios (2011), dirigido por Beto Brant e Renato Ciasca, é inspirado no livro homônimo de 2005, de Marçal Aquino, que, aliás, também é o responsável pelo roteiro da adaptação. Este é sétimo trabalho que nasce da parceria e da amizade de 20 anos entre Brant e Aquino. Pela mão de Brant, já foram à tela Os Matadores (1997), Ação Entre Amigos (1998) e O Invasor (2001), todos livros de Aquino. Os outros três filmes do diretor (Crime Delicado – 2005; Cão Sem Dono – 2007; e O Amor Segundo B. Schianberg – 2009) não foram baseados diretamente na obra de Aquino, mas também tiveram sua participação como roteirista. Já com Renato, Beto já vinha trabalhando desde O Invasor, sendo Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios o primeiro filme no qual dividem a direção.

O filme narra o romance tortuoso que nasce entre Lavínia, uma mulher cheia de histórias ocultas (e esposa de Ernani, um popular pastor e líder religioso), e Cauby, um fotógrafo vindo de São Paulo. Como pano de fundo, o cenário paradisíaco de uma cidade no interior do Pará, rachada pelas tensões entre ambientalistas e madeireiras ilegais.
Eis um dos pontos fortes do filme: apesar de o foco se mantém prioritariamente sobre o triângulo amoroso, Brant e Ciasca conseguem também imprimir um teor político. Durante as gravações do filme, os índios de Santarém estavam denunciando a extração ilegal de madeira em áreas de conflito. Esse foi o gatilho que fez a equipe se interessar pelo tema e conversar com lideranças da região. A dupla de diretores, então, inseriu no longa cenas que dialogam com as disputas ambientais presenciadas. Exemplos disso é a pregação que o pastor faz em defesa da preservação das matas e dos rios e o discurso de um ativista contra “um governo que na verdade é mais latifundiário que os madeireiros” e contra “um plano de manejo de destruição” da floresta. Tudo isso sem desviar ou destoar do romance narrado.

Outro aspecto que chama atenção é a influência da cultura paraense, por meio das cores, das moradias, da trilha sonora, da iluminação, dos costumes e mesmo da culinária. Ao mesmo tempo em que o ambiente, os elementos cênicos e os sons refletem as belezas do Pará, eles são articulados de tal maneira a criarem também uma aura de mau presságio que paira constantemente no ar, contribuindo para um crescente suspense insuflado no ânimo de quem assiste.

Gero Camilo no papel de Viktor Laurence,
jornalista de língua ferina 
Tudo isso se transforma em características secundárias frente à incrível complexidade psicológica de que são dotados os personagens, graças ao roteiro e às interpretações dos atores. Gero Camilo dá um tom de malícia venenosa a Viktor Laurence até nos movimentos corporais, assemelhando-o a uma peçonhenta serpente, de língua e palavras afiadas. Já Magnólio de Oliveira consegue fazer um palhaço amigo que esconde sob os sorrisos um quê de alerta, enquanto Zécarlos Machado interpreta um Ernani eloquente e persuasivo nos discursos feitos aos fiéis. Até mesmo Gustavo Machado, criticado por alguns pela atuação fria, consegue passar o espírito de galanteador do personagem Cauby.

Deles, porém, é nítido o brilho que a enigmática Lavínia e a poderosa interpretação de Camila Pitanga adquirem. A atriz consegue encarnar diferentes facetas de uma mesma personagem sem nunca perder a unidade, mesmo com as enxurradas de transformações que invadem a vida de Lavínia. Camila dá a ela um semblante sensível, sensual e agressivo, deixando à mostra as cicatrizes guardadas no peito de uma mulher que muito sofreu e que ainda muito sofrerá.


Em diversas situações, Lavínia se encontra presa a uma situação em que há uma vontade mista de permanência e de fuga (seja naquela que vivenciou no Sudeste, seja na que vive no Norte). Entre um amor piedoso oriundo de uma profunda gratidão e uma paixão lascívia embalada em um sonho antigo, Lavínia se faz perder e reencontrar nas águas escuras que são seus sentimentos. Porém, sempre é dela a palavra-ação capaz de se aprisionar ou de se libertar.

O filme traz em si uma carga erótica muito latente, visível desde a abertura, em que uma modelo nua posa para a câmera oculta de Cauby. A sensualidade tratada ali no filme não remete a uma perspectiva isenta de gêneros. É o erótico dos corpos femininos visto através de olhos masculinos. Uma visão que parte da masculinidade, sem cair, necessariamente, na caracterização machista. Além disso, o erótico e o perigo são constantemente costurados em um só, como na cena em que Cauby e Lavínia brincam de pintarem sua nudez com pincéis encharcados de tinta, imaginárias flechas venenosas lançadas na guerra entre índios rivais.

Em sintonia com os nãos e os sins de mistério que circundam Lavínia, elipses ambíguas marcam todo o percorrer do filme, mais escondendo e embaralhando do que explicando os fragmentos narrativos. No último ato, um corte brusco no tempo deixa muitas perguntas gravitando num vazio. O espectador, na companhia da própria Lavínia, se pergunta o que foi feito dela e se ela ainda existe. Até que um chamado ressoa e um sorriso inquietante se desenha. E os olhos do interlocutor sorriem, mesmo sem visão. Mesmo sem final.

domingo, 11 de agosto de 2013

Entre dois mundos e dois tempos: um duelo

Ao fundo, um som de mar abraça o palco gigantesco montado em todo o andar inferior do Theatro José de Alencar (TJA). O marulho acompanha o movimento ondulante da lona negra nas mãos dos atores, enquanto o público, instalado nos camarotes, debruça-se nos balcões como em grandes janelas, a curiar o vai e vem da vida dos personagens. O farfalhar do plástico, casado à sonoplastia, lembra a trilha sonora de uma orla, cenário tão familiar nosso, ao mesmo em que remete a um mar negro que em tanto se distancia do mar verde que nos banha. O duelo começou.

***

Dando sequência às adaptações de romances russos, a mundana companhia (assim mesmo escrito, em minúsculas, com o adjetivo anteposto ao substantivo), de São Paulo, monta o seu sexto espetáculo numa lógica inversa daquela geralmente presente em companhias do eixo RJ-SP. Desde o dia 02 de agosto, até este domingo (11), está em cartaz no TJA a peça O Duelo, encenação da novela russa de Anton Tchekhov, cuja estreia nacional acontece em Fortaleza para, depois, partir para outras cidades do Nordeste até chegar à capital paulista.

Porém, antes mesmo das primeiras apresentações em Fortaleza, o público de três cidades do interior do Ceará pôde acompanhar o processo de criação do espetáculo. A companhia decidiu viajar por quase dois meses pelas cidades de Arneiroz, Iracema e Lavras da Mangabeira. Esta última é a cidade natal do ator Aury Porto, idealizador da peça e um dos fundadores da mundana companhia, servindo para ele como inspiração. Foi a partir da própria história de Aury que veio a ideia de aproximar o calor e a vida do Cáucaso à quentura e à rotina de pequenas cidades do Nordeste. Confira abaixo a conversa que tivemos com Aury sobre a ideia da peça e os próximos projetos da companhia:



A obra de Tchekhov, escrita em 1891, relata o cotidiano de personagens que moram em um calorento e pequeno lugarejo caucasiano, mas que anseiam por uma Rússia de clima mais ameno e de (suposta) efervescência cultural. No centro do romance, está Ivan Laiévski, um funcionário público que fugiu de São Petersburgo com Nadejda Fiódorovna, já casada com um outro homem. O comportamento do casal desafia as regras socialmente estabelecidas e provoca reprovação por parte dos moradores, quer seja de maneira mais translúcida, como no zoólogo Von Koren, quer seja de maneira mais camuflada, como em Maria Konstantínovna, “amiga” de Nadejda. A vida de Laiévski e Nadejda então passa a ser serrada por duelos: em seus íntimos, entre si, entre eles e os moradores. Até que Von Koren desafia Laiévski para um embate derradeiro.

Durante as três horas e meia de espetáculo (com 15 minutos de intervalo), uma variedade de elementos consegue prender a atenção do público e evitar um pouco o cansaço. A música se faz presente durante toda a peça, enquanto a iluminação e a sonoplastia amplificam a beleza das cenas. Materiais do cotidiano ganham outras cores e significados no palco. Em um momento, Nadejda se refresca nas águas do mar e brinca com um imenso saco plástico, que se transforma em uma bolha onde pode imergir para longe das dívidas e das febres costumeiras que lhe acometem. Em outro, uma chuva de fitas de papel gravita na tensão de relâmpagos e trovões de uma tempestade que chega à cidade, enquanto um redemoinho toma conta de Nadejda e da vida dos demais personagens.

Apesar de se passar no contexto europeu do século XIX, muitos elementos cênicos remetem diretamente à cultura cearense, como instrumentos musicais, chinelos de couro, cadeiras de balanço, além do próprio calor inclemente do sol e do barulho suave do mar. No tablado, não há somente o duelo de entre as ânsias particulares dos personagens e as expectativas sociais que conseguem ou não atender. Ali, chocam-se dois mundos separados por espaço e tempo, que se casam e se digladiam em constante movimento. Ou melhor, embatem-se duas realidades sociais: Cáucaso X São Petersburgo, Ceará X São Paulo, Nordeste X Sudeste, a dita “periferia” versus o dito “centro”. Talvez seja por isso que este texto de Tchekhov se mantenha tão vivo e consiga se conectar tão diretamente ao contexto brasileiro.

***

O embate chega ao fim. As ondas do mar, por ora tão esquecidas, prevalecem após tantos acontecimentos. É o som da natureza que suplanta as arrogâncias e as vaidades humanas. A lona negra agita-se, prolonga-se. Não há mais Laiévski, Von Koren, Nadejda, Konstantínovna, Samóilenko, Diácono, o desfile de personagens. Em vez disso, surgem em cena Aury, Pascoal, Camila, Carol, Vanderlei, Freddy, o elenco. As ondas precipitam aos poucos no tablado, enquanto os atores as perseguem e delas fogem, como em uma brincadeira entre amigos numa praia durante o tempo livre. Até que uma gigante maré os engole e os leva para sempre ao fundo do Mar Negro. Tudo se faz escuridão. Mas o duelo ainda não terminou.

Serviço

Espetáculo O Duelo, da mundana companhia
Duração: 3h30.
Local: Theatro José de Alencar.
Apresentações: Às 19h, até hoje, 11.
Ingressos: R$ 20 a inteira, R$ 10 a meia.



Para saber mais, acesse o blog da peça, o site e a página no Facebook  da companhia.