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sexta-feira, 26 de julho de 2013

Vazios que povoam a vida


Foto: Tamara Lopes
Na entrada do cemitério São João Batista, um grupo de pessoas se aglomera. São quatro horas da tarde. A luz do sol ainda está forte, mas começa a se decompor em amarelo. Um prenúncio de sua morte, marcada para poucas horas ali adiante. Uma moça, sentada a uma mesa coberta por toalha de rendas brancas, recolhe nomes que, por ventura, alguém quisesse abençoar. Dou-lhe o nome de minha mãe. “O que você deseja pedir a ela?”. “Paz”. Minutos depois, ao toque de uma sineta, ela lê a lista dos mortos. Com surpresa, ouço reverberar o de minha mãe entre as falecidas, por mais que, poucas horas atrás, eu houvesse lhe dado um beijo antes de sair de casa. Outro espectador converte surpresa em risada ao saber da notícia sobre sua própria morte durante um voo pra Rondônia.

Assim se inicia a peça Além dos Cravos, do grupo teatral Em Foco. O enredo não trata de qualquer história específica. Antes disso, costura com a linha da teatralidade trechos narrativos às vivências dos espectadores. Sim, esta não é a típica peça interpretada no palco italiano, em que há a clara divisão entre os atores e o público. Em Além dos Cravos, todos acabam sendo protagonistas e ao mesmo tempo espectadores ante o tema comum a qualquer ser humano: a efemeridade da vida. 
Foto: Tamara Lopes
Mercantilização da morte, suicídio, saudade dos entes amados, dores lancinantes, resignações serenas. Tudo isso tratado com muita sensibilidade e, em momentos certos, com um toque de humor. A cada cena, questionamentos são plantados e nos fazem rever relação que temos com a morte. Por que vivemos numa sociedade que idolatra tanto a vida e se silencia sobre a morte? Por que esquecer aquilo que não se pode apagar? Quando nos vamos "para o outro lado", realmente “vamos”? Ou viramos fantasmas sentados nos túmulos, observando a vida passear? 

Os diversos elementos cênicos traduzem a suavidade e a delicadeza com que o tema é tratado. Coroas de flores pairam sobre as cabeças dos atores ou botões de violetas de plástico se enroscam em suas roupas. Os tons lilases do figurino amenizam o preto e branco dos trajes e das galochas. Mesmo a morte, caracterizada como homem, materializa-se em gazes que dão leveza aos movimentos. A água, utilizada em várias cenas, ora corre, ora se represa, transformando-se em ponte fluida entre os vivos e os mortos.

Nas ruas do cemitério



Foto: Tamara Lopes
O ambiente inusitado é outro atrativo. Não só pela beleza do São João Batista (nunca antes conhecida por mim), mas pela própria aura de mistério que ronda o lugar. As cenas transcorrem em uma das tantas “ruas” que cortam o ventre do cemitério, prenhe de mausoléus luxuosos que dividem espaço com lápides mais singelas, empalidecidas pelo tempo. No cortejo que se forma com a peça, vemos vidas passadas traduzidas em cruzes, datas, flores, cimento. O vento corre e sacode as árvores com um murmúrio. Entre uma lápide e outra, "fantasmas" contemplam os vivos em procissão.


Aliás, atuar em “palcos” nada convencionais é a proposta de pesquisa do Em Foco. Além dos Cravos é o terceiro espetáculo do grupo, que desde 2009 já montou Preciso dizer que te amo, Jardim das Espécies e algumas outras esquetes e performances. No cerne de cada trabalho está o relacionamento direto com o público, que deixa o voyeurismo de lado e se envolve com aquilo que é apresentado. Em Além dos Cravos, o público é convidado compartilhar de memórias sobre a morte. Até os atores se abrem um pouco e inserem na interpretação lembranças próprias.

Por isso, essa relação até se complica quando há um grande número de espectadores (como na apresentação em que fomos) e muitos detalhes das cenas se perdem. Mas sempre é bonito ver a quantidade crescente de pessoas abertas ao teatro. Não foi raro perceber, mesmo entre uma distração e outra do público, pessoas se emocionando e/ou compartilhando dos sentimentos das falas.

O sol vai se pondo. E nós, em cortejo, perseguindo até a última luminosidade, chegamos aos fundos do cemitério. Como a vida, aos poucos, a tarde vai se desfazendo e dá últimos suspiros. Com giz, o público é convidado a deixar um recado final gravado no chão. É aí que refletimos principalmente sobre os nossos próprios entes queridos que já morreram. Como estarão? Devemos preservar o vazio deixado por eles? Ou devemos alimentar o oco com as lembranças que nos são tão caras? Pensamentos que ecoam durante a caminhada de volta para a entrada e que não encontram respostas definitivas, enquanto observamos as flores e a poeira dos túmulos que ali permanecem.

Foto: Tamara Lopes

Serviço
Para os que ficaram curiosos, este final de semana será o último de apresentação de Além dos Cravos. A temporada da peça se encerra neste sábado (27/07) e domingo (28/07), às 16 horas, no Cemitério São João Batista (R. Padre Mororó, 487 – Centro). A entrada é gratuita. Para conhecer mais sobre o grupo, visite a página do grupo no Facebook. Para conhecer um pouco mais sobre a história do Cemitério, confira no blog Fortaleza Nobre.